Vilipêndio

Às vezes você simplesmente não sabe!

A pergunta estava suspensa no ar, como um besouro que fica parado enquanto voa pesadamente na sua frente, batendo as asas, olhando com cara de bobo, fazendo você pensar que é fácil derrubá-lo e tirar a graça daquele brilho verde estúpido que ele carrega.

Você acredita realmente que pode derrubá-lo, então estica sua mão e dá um golpe desengonçado e é obrigado a ver o bicho desviar rapidamente, não seria possível ver um sorriso naquela cara peluda, mas você sente que ele sorriu e fica com raiva

Foi exatamente isso que aconteceu com a minha resposta, uma tentativa frustrada de derrubar aquele besouro gordo e descobrir que era mais dificil do que parecia A verdade é que eu não sabia responder, não me vinha justificativa, balbuciei um "foi porque", mas não havia continuação, nenhuma que fosse digna de ser pronunciada, afinal, eu precisava convencer o delegado, dizer algo consistente, mas nada me vinha na cabeça

Era uma pergunta simples, feita com poucas palavras

"Porque você a matou ?"

Estavamos em uma sala sem janelas, havia sangue em minha roupas, debaixo das unhas

"Diga homem, porque você a matou, você foi preso em flagrante"

"Eu a amava" Foi a única verdade que consegui me lembrar

"Tá, mas o que ela fez? te traiu?"

"Eu a amava" repeti, como quem não quer esquecer algo e fica repetindo

"Sim, isso eu já entendi, mas então, porque diachos você a matou daquele jeito?"

"Que jeito?" Do que ele estava falando, eu não lembrava de nada, cenas sem nexo surgiam na minha mente, muito sangue, mas não lembrava, como era difícil me concentrar

"Como assim que jeito? Não lembra ou tá bancando o maluco?"

"Não lembro não senhor, estou confuso, que dia é hoje?"

"O que? você quer saber que dia é hoje, se tá de brincadeira? Olha pro seu governo, hoje é o dia que você matou sua mulher com tantas facadas que os legistas devem ter desistido de contar os buracos"

"Eu fiz isso?"

"Lógico que fez, quando meus homens chegaram você estava lá, sentado na sala com a faca na mão, sua mulher morta no quarto, você matou sua mulher e perdeu o juízo foi?"

Olhei para aquele homem, um tanto fora de forma, meia idade, com ar de cansado mas mesmo assim imponente, parecia ter visto muita coisa feia na vida e na carreira, mas olhava para mim com um ar de nojo, parecia prestes a vomitar

Pensei, do jeito que ele me olha deve estar falando a verdade, será que matei a Lúcia, minha Lucinha, branquinha e loura, será ? Não conseguia me lembrar...

"Eu falava pra ela não fazer nada, eu sempre falei"

"Pra ela não fazer o que homem, não te chifrar, foi isso que você falou?"

"Não"

"Então o que?"

"Não lembro"

"Pronto, desse jeito seu advogado vai querer alegar insanidade"

"Eu disse pra ela não fazer nada" as palavras sairam da minha boca em um grito estrangulado

"Para ela não fazer o quê ?"

"Pra ela não fazer nada, que ia ficar tudo bem, mas ela vivia falando que ia fazer"

"Ai cacete, fazer o quê?"

"Ela andava diferente, estranha, falava disso toda noite, mas eu achei que ela não tivesse coragem" Estava me lembrando de conversas que tinhamos sentados na cama. lembrava de Lúcia chorando, com as mãos cobrindo o rosto.

"Puta merda homem, você achou que ela não tinha coragem de fazer o quê? o que foi que ela fez?"


"Eu disse que se ela fizesse eu faria uma besteira, não ia conseguir viver assim"


"Essa parte eu já entendi, mas o que foi que ela fez?"


"Eu fiquei com tanta raiva, ela não tinha o direito, estou com tanta raiva dela, eu acho... eu acho que não a amo mais, eu sinto que a odeio, pelo que ela fez"

As lágrimas começaram a cair

"Pronto, agora você a odeia? Isso não importa, ela está morta. Olha, quer saber, vou te mandar de volta pra cela, pelo visto não vou conseguir nada de você"

Chamou dois guardas para me levarem, saí da sala repetindo: "Eu disse pra ela não fazer, eu disse"

O Jornal na manhã seguinte dizia:

MARIDO ESFAQUEIA ESPOSA APÓS ENCONTRÁ-LA MORTA

Legistas concluiram que as diversas facadas feitas pelo marido aconteceram após a morte da esposa, provavelmente por suicídio... Delegado diz que ele poderá responder pelo crime de Vilipêndio a cadáver, mas não por assassinato...